Conta-Corrente: A lagoa azul
Num documentário acerca de ratos, recentemente exibido pela RTP2, apresentava-se uma experiência curiosíssima. Um rato, quando colocado num labirinto, consegue descobrir e "anotar mentalmente" o caminho que o conduz a uma bolacha de chocolate. Se colocado no mesmo labirinto uma segunda vez, o rato segue direito à bolacha. Encontrou o seu prémio, encontrou aquilo de que gosta. Mas quando o processo se repete, o rato faz algo muito curioso: apesar de saber o caminho, ele não vai direito à bolacha. Ele segue a via da curiosidade em deterimento da obtenção de uma recompensa certa, e tenta outros caminhos inexplorados, em busca de algo melhor do que uma bolacha.
Pelo menos nisto, não somos diferentes dos ratos. Apenas exageramos o efeito. É isto a curiosidade humana também: é esquecermos aquilo que temos por certo como bom, e vermos no desconhecido o canto da sereia, considerando a busca da perfeição como uma alternativa à certeza do belo. É isto que nos faz progredir enquanto espécie, e enquanto indivíduos na sociedade. Aquele que não se contenta com o que tem possui uma vantagem muito significativa perante aqueles que se resignam às suas conquistas presentes. A diferença entre um humano e um rato neste assunto é que nós temos capacidade preditiva, podemos antever se a busca que encetamos terá ou não um bom resultado. Não seria natural gastar recursos a perfurar a superfície da terra à procura de outro combustível que não petróleo.
O problema surge quando se esquece esse equivalente certo que é o presente, e se parte em busca de quimeras inexistentes. A extrema teimosia humana leva alguns a desafiarem todos os limites da racionalidade, e a procurarem encontrar o seu paraíso, ao qual foram os primeiros a chegar, e que é melhor que o paraíso de todos os outros, aqueles que ficaram para trás. É a síndrome "Lagoa Azul", um filme dos anos 80 onde duas crianças perdidas numa ilha deserta encontravam ali um modo de vida único, e nunca viriam a conseguir adaptar-se à civilização. O filme foi popular por perpetuar esse mito tão querido à parte romântica das nossas ideias, o mito do bom selvagem, que de certa forma é também um reflexo dessa busca por algo inatingível.

Acredito que no wrestling se passa algo de semelhante. A WWE é o status quo, é a nossa bolacha de chocolate. O seu wrestling tem qualidade enquanto entretenimento, o que apesar de tudo é uma componente essencial deste semi-desporto. E, relativamente à qualidade intrínseca dos combates (nunca ouvi uma única boa definição do que isso seja), alguns dos seus Main Eventers são os melhores de toda a indústria.
Apesar de serem um fenómeno mais antigo, pequenas federações supostamente independentes, ou indys, vieram ocupar o vazio de poder que saiu das Monday Night Wars, e da compra pela WWE da WCW e ECW. As indys são o canto da sereia, são a lagoa azul. Destas indys exclui-se apenas a TNA, que sempre teve sonhos delirantes de vir a competir com a WWE, e portanto foi alimentar-se dos melhores Wrestlers das indys, e metê-los num show muito WWEsco. Com os resultados desastrosos que se vêem.
No fundo, o que é que separa as indys, e sobretudo o seu expoente Ring of Honor, da WWE? Os seus fãs dirão que o Wrestling é mais autêntico, com mais golpes aéreos espectaculares, personagens interessantes e sem lutadores gigantescos e toscos. Dirão também que têm uma ligação grande com os fãs, e que os shows são coerentes e fazem sentido. Dirão também que os lutadores são, afinal de contas, melhores.
O problema é que todos estes argumentos são mentira. As indys são tão autênticas como a WWE, apesar de venderem o seu produto como se tivesse a legitimidade da luta-livre olímpica. Há um culto semelhante nas Mixed Martial Arts, mas que fica para outras núpcias. Quanto aos golpes aéreos, há uma expressão que classifica esse tipo de combates: spot fest. Argumentar com golpes espectaculares é esquecer algo fulcral: sim, o Wrestling deve ser atlético, mas acima de tudo um combate feito com guião tem de contar uma história. Um bom momento assombroso, com uma manobra perigosa, apenas tem significado no momento correcto, e não de forma indiscriminada, repetindo-se ao longo de um combate. As personagens dos lutadores nestas federações são também geralmente desinteressantes e as promos aborrecidas. Tão aborrecidas como as da TNA, mas ainda mais temperadas pela falta de carisma de quem as executa. E para quem acha que não há gigantes toscos nas indys, já viram o japonês ex-campeão da ROH? Sem carisma não há ligação com o público. Não, estas federações quanto muito têm uma ligação com o pequeno culto que se instala em torno de si, não com a generalidade dos fãs de wrestling.
Mas então será que não têm coisas boas? Claro que sim. Quase todos os grandes lutadores começaram nas indys. O meu ponto é exactamente esse: se alguém é bom nas indys, ele é imediatamente captado pelas grandes federações (terei de falar no fenómeno CM Punk?). E não é à toa que a WWE os faz passar por um rigoroso programa de treino, onde devem reaprender tudo o que pensavam saber até então. A TNA não o faz. E qual o resultado? Samoa Joe foi um rei na ROH, tal como Homicide, apenas para citar alguns nomes. Hoje, parecem estancados nas posições onde se encontram. Não têm grande chama, nem apelam particularmente a ninguém, lá está, a não ser à mesma sub-cultura que os tornou vedetas.
As indys apenas têm expressão e significado por via da Internet, onde os chamados smarts, fãs de Wrestling que se acham muito inteligentes por deslindarem as storylines, e saberem que o Wrestling tem guiões (ao bom jeito do descobrir a pólvora depois da guerra), lhes fazem uma promoção sem rival. Estas pessoas seguem unicamente o mesmo instinto que todos seguimos quando construímos um herói, e depois o descartamos. Estas pessoas recusam que a WWE seja o melhor que o Wrestling tem para oferecer, mesmo que tenha sido quem as introduziu na modalidade. Muitas simplesmente já não vêem a WWE (o que não as impede de fazerem correr muitos electrões com mensagens anti-John Cena, provavelmente esquecendo o trambulhão que a WWE levou nas audiências com a sua lesão... mas esse assunto fica para a próxima semana). Agora, procuram algo melhor, e julgam tê-lo encontrado nas indys.
Acredito que, para algumas pessoas, tal possa mesmo ser uma opinião sincera, e traduza um legítimo gosto pessoal. Mas, para muitas, é querer ver qualidade onde ela não existe, porque fica bem gostar de algo que os outros não conhecem. Dá bom assunto para conversa de café, e faz-nos parecer informados. Mas e se todo o Wrestling fosse indy? Isso seria o fim da indústria. Pela minha parte, e sei que pela parte da generalidade dos fãs, eu deixaria de ver Wrestling. Vi recentemente uma promo de dois meninos bonitos dos smarts, os Motor City Machine Guns, com os Briscoes da ROH, que é de apetecer entrar no ringue para bater naqueles indivíduos, para tentar acordá-los. Claramente escolheram a carreira errada. Back flips, como diria BG James, não são tudo.
Sou essencialmente fã de Wrestling. No Wrestling, prefiro a WWE, mas não desminto que exista lugar para tudo, inclusive para as indys. Mas na Internet, que apesar de tudo continua a ser a principal ou mesmo única fonte de notícias de Wrestling, e isto quer nacional como internacionalmente, começa a ser cansativo ver um conjunto militante de fãs, que tipicamente dominam a escrita em sites ligados à modalidade, com afirmações enviezadas sempre para o mesmo lado. E uma mentira, se for afirmada muitas vezes, torna-se mesmo verdade. Assim, convencem-se não só os outros, como os próprios que o escrevem a si mesmos. É cansativo este unanimismo, que se esconde atrás de afirmações pseudo-jocosas e vazias, mas na verdade demasiado sérias para algo que, afinal, deveria apenas ser divertido. O Wrestling, com ou sem 450º Splash, é entretenimento. Lidem com isso.





6 Comentários:
Está um belo texto, mas tenho de fazer um reparo à primeira foto. A moça em questão não é a Brooke Shields mas sim a Milla Jovovich, que entrou no segundo filme, já em 1991. Para quando o Lagoa Azul 3, com a Eliza Dushku? Para variar podiam pô-la sozinha na ilha com outra moça, acho que o público ia gostar.
Mais uma vez: belo texto!
texto estereotipado e básico. Onde é que o wrestling das indys pretende ser mais a sério que o da WWE? mais real, etc? nunca, em lado nenhum, em nenhuma indy relevante.
aliás, em todo o discurso, quando falas de indys estás a falar de ROH, quando tens outras indys como Chikara, IWA-MS ou PWG em que muita da actuação reside no valor da comédia. E têm também todas diferentes estilos
falar do estilo das indys em geral é desde logo um erro... e mesmo que fossemos apontar para os aspectos essencias que tornaram as indys relativamente populares (ou pelo menos as tornaram para muitos, como eu, em eventos mais interessantes que os da WWE) o teu texto falha-os completamente.
Mesmo na ROH... não é lá que um angle romantico de 1 ano com canções e encontros parvos é considerada a melhor storyline da companhia por muitos fãs?
quando arranjar tempo comento o artigo com um artigo meu, e com sorte tenho uma resposta...
é que mesmo discordando com quase tudo o que está escrito (ou considerando pelo menos que está mal prespectivado) é a coisa mais interessante que apareceu para se discutir em termos de wrestling em alguns bons meses
sem perder muito tempo mais aqui.
para o argumento de que as indys querem ter wrestling sério:
http://www.youtube.com/watch?v=9bFBDUc6n6k
http://www.youtube.com/watch?v=9ioAQg-1Kxw&mode=related&search=
e isto naquela que será discutivelmente a segunda indy mais over do momento
Caro Ricardo:
Agradeço o teu comentário, pois o objectivo deste espaço (que tem sido algo falhado) é precisamente incitar a discussão. Gosto sempre de conhecer todas as opiniões, e acho que é do debate de ideias que as posições se tornam claras e que se alcansam consensos. Não acho que seja nunca "perder tempo", para usar uma expressão do teu segundo post. Gostaria, então, de te deixar aqui mais algumas indicações, caso pretendas mesmo responder-me.
Um dia ensinaram-me algo que eu mantenho como válido para toda a vida: podemos sempre concordar, estar a favor da corrente, sem qualquer esforço; mas para discordarmos precisamos de saber muito bem aquilo que criticamos, e saber justificar exactamente porque se discorda. Sabendo isto, acredita que eu fiz o meu trabalho de casa, até porque eu até pensava que iria ser mais atacado pela IWC por não seguir a onda de santificação das indys.
E é por isso que gostava de te perguntar o que é "estereotipado e básico" no meu texto. E também como é que um "texto estereotipado e básico" consegue levantar uma questão que "é a coisa mais interessante que apareceu para se discutir em termos de wrestling em alguns bons meses".
Se aumentares a resolução da tua análise para teres uma perspectiva mais alargada do âmbito do texto, verás que o assunto que foco não é aquele a que respondes (a qualidade das indys), mas sim algo subtilmente relacionado: o fenómeno que considero curioso de apesar das indys não terem "piada" nenhuma para o fã médio de wrestling (e menos ainda para os fãs ocasionais - estou a dizer isto após ter visionado os vídeos que colocaste aqui), existir uma comunidade, tipicamente local ou da IWC, que lhes dá grande destaque e um relevo muito acima da sua importância estatística. O parágrafo que tu criticas é apenas uma passagem para dizer que essa atenção não resulta da qualidade intrínseca do produto.
Neste sentido, discordo completamente quando dizes que não podemos analisar as indys em simultâneo. Isso é como dizeres que não se podem analisar os anfíbios, os mamíferos ou as aves em geral, o que é mentira. Cada grupo taxonómico tem características unificadoras, existindo obviamente divergências de pormenor que não interessam a ninguém, sem ser aos especialistas. Ao generalizarmos, perdemos informação, mas esse é um efeito banalmente conhecido e na generalidade dos casos aceitável da peda de resolução para ganho de universalidade. Se o que eu critico é a forma como as indys são aceites pela IWC, não me parece que seja relevante uma análise caso a caso.
Também não entendo o sentido de dizeres que abordo as indys em geral, e depois acusares-me de só ter falado na ROH. Esclareço mais esse ponto: quando fazemos uma esposição generalista, devemos utilizar exemplos concretos paradigmáticos para facilitar a inteligibilidade. A ROH foi meramente um exemplo na minha exposição.
Dizes também que o meu texto falha as verdadeiras razões pelas quais as indys são populares. Gostaria, então, que indicasses que caracterísitcas pensas serem essas, e em que estão erradas aquelas que eu indiquei. Recordo-te apenas que o meu ponto, que repito de novo, é precisamente que as indys não são populares, senão com um grupo muito específico de pessoas. Isto só para não teres de responder a algo que eu não disse.
Há também coisas que dizes que não são divergências de opinião, são simplesmente factos. As premissas gerais das indys são conceitos como a autenticidade ou o atleticismo. Haverá excepções? Claro que sim. Obviamente agora poderia dar-te contra-exemplos e mostrar-te textos de responsáveis de indys, mas sinceramente não tenho tempo. Até porque, mais uma vez, o ponto não era esse. O ponto, até nesse parágrafo, era o seguinte: é curioso que fales no valor da comédia, porque afinal de contas essa é uma das premissas, sim, da WWE. E continuamos com a mesma divergência: o fã médio da WWE (já fiz o teste) não vê em coisas como as que estão nesses vídeos grande mérito ou humor. Na minha opinião, são humor parvinho. Um homem paralisado e lutar em câmara lenta? Parece que vamos sempre bater à mesma tecla, e afinal após esta longa resposta regresso ao ponto desse parágrafo do meu texto original: as indys nem sequer são originais, e muito menos as melhores no que tentam fazer.
Mas aguardo então pela tua resposta. Se não acreditares naquilo que digo e nos factos que aponto, por essa ocasião publicarei aqui uma lista com referências concretas. Eu sei que isto de apontar factos sem citar referências dá aso a divergências destas, mas enfim, isto é apenas um hobby, e não nos devemos esquecer que o que importa é o wrestling, e é divertirmo-nos.
espero responder ainda hoje quando cessarem as minhas obrigações escolares.
só algumas considerações breves
quanto ao texto ser estereotipado e básico, pronto, é exagero meu, principalmente na parte do básico. é um texto com personalidade e de opinião, e o meu problema não é a tua opinião, mas sim o que considero ser um erro da análise grave que é constituido por juntar os so called smarts com todo o público das indys...
se fores ao forum da ROH vais deparar-te com imensos fãs do John Cena, e até à uns tempos até se discutia sobre como as Smackdowns a certa altura estavam a ter mais qualidade que os shows da ROH...
No entanto, há no IWC um esteoripo sobre fãs da ROH, que é o estereotipo que tu usas para definir os smarts...
essas pessoas existem? sim, infelizmente. são a grande base de fâs das indys? não, de maneira alguma, podem ser talvez as que mais se diferenciam em certos foruns.
mas digo-te mais, essas pessoas nem sequer são normalmente as pessoas que vão aos shows... dou este exemplo, nas gravações do primeiro PPV muitos dos 'smarts' decidiram aparecer e nos live reviews do show a generalidade era que até podia ter sido um grande show, mas que o público o estragou por completo com alguns comentários despropositados.
este público, são as muito criticadas gentes que vão aos shows para se por over, são os que vão aos foruns para se por over... são no fundo os "smarts" que pretendem dar nas vistas com os seus "conhecimentos" e que a meio de combates ao vivo se põe a discursar sobre workrate.
só que o público geral da ROH é mark, e não pretende ser outra coisa.
depois claro que há publicos e publicos... por exemplo, este: http://www.youtube.com/watch?v=y5lJCFpPVcs é um público que acha piada a certas interacções... outros começariam a cantar "shut the fuck up".
mas isto já se começa a tornar-se num texto desconexo e grande, por isso fico-me por aqui e depois faço uma resposta melhor estruturada
A palavra "estereótipo" dá-me urticária... Era um termo muito na berra há alguns anos, mas do qual nunca gostei, pois sempre me pareceu extremamente estereotipado designar algo por estereótipo...
Não entendi o teu último comentário, pelo que não lhe vou responder fingindo ter percebido tudo. Fico à espera então do teu post organizado e pensado sobre o assunto, ao qual terei todo o gosto em responder.
Por ora, deixa-me apenas, mais uma vez, reafirmar que o meu texto tinha por intenção expor um fenómeno, a da grande aceitação na IWC das indys, e da aceitação inexistente pelo público médio de wrestling.
É óbvio que há diferenças entre públicos ao vivo e públicos online, que a ROH não esgota o universo de indys, que há fãs e fãs, etc. Essas discussões de pormenor não me importam neste caso. Quando queremos inferir ou deduzir regras gerais que incorporamos numa crónica de 2 páginas, temos que perder detalhe para ganhar em abstracção, mas isso é deliberado e não me parece necessariamente errado. Aquilo que me parece que estás a dizer, e com isso eu não concordo minimamente, é que porque me referi às indys, naquilo que designas por estereótipo, no seu todo estou desde logo a cometer um erro de base. Não é esse horror pela generalização uma forma de estereotipagem?
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