Contra-corrente: Heróis descartáveis
Quem se deslocou ao Parque Tejo no Verão do presente ano para o concerto de uma das melhores, maiores e mais antigas bandas da história recente da música mais pesada, os Metallica, foi brindado com um espectáculo audiovisual, no qual as estrelas maiores foram os temas esquecidos na sua já extensa discografia. Um desses temas que se fizeram escutar pelo recinto e imediações, e que é muito poucas vezes interpretado netas ocasiões, data de 1986, e tem por título “Disposable Heroes”. Trata-se de um tema que aborda a forma como as nossas instituições políticas e militares criam indivíduos que carregarão a bandeira e a nação às costas, como verdadeiros heróis, apenas para que depois os possam enviar para a linha da frente de uma batalha qualquer onde enfrentam uma morte certa, e são substituídos no mesmo papel desde logo por um outro. Uma face entre muitas, saciando o nosso permanente desejo por novidade e evolução.
A forma um pouco hipócrita como a sociedade entende a profissão de soldado, ou pelo menos como o fazia à data, era esta mesmo: como heróis descartáveis. Usa-se um, cria-se outro. Não é tão dramático como enviar um jovem para a sua morte, mas o facto é que também na sociedade civil com grande facilidade se transformam indivíduos normais em pessoas extraordinárias, apenas para mais tarde os ver cair, destroçados pelo mesmo sistema que lhes conferiu notoriedade. Andy Warhol designou este efeito pelos tais 15 minutos de fama a que supostamente todos temos direito.
Mais uma vez, como em tantos outros casos, o Mundo impiedoso do Wrestling amplifica esta tendência. E acaba por fazê-lo de uma forma directa e de uma forma indirecta. A forma directa é simples, e ocorre através dos “pushs”, que são séries de vitórias ou exibições dominantes nas quais se permite a dado lutador ganhar algum tipo de realce e exposição pública. Mas basta uma situação infeliz nos bastidores, ou até um capricho do promotor da federação em causa, e de vedeta em ascensão esse mesmo lutador passa de imediato a “jobber”, sendo derrotado de forma limpa em vezes consecutivas. Tão depressa como vieram, os 15 minutos passaram.
O efeito indirecto é mais subtil, e passa-se numa esfera mais ampla que o estrito plano da relação entre federação e lutador. O efeito indirecto envolve-nos a nós, enquanto público, à imprensa, enquanto ávida por notícias que transformem o particular no geral, e aos próprios lutadores, no âmbito das suas escolhas individuais. Há casos que se tornam muito interessantes devido a este efeito indirecto. E que caso maior poderia existir do que o do grande herói americano Kurt Angle?
Kurt Angle ganhou uma medalha de ouro na modalidade olímpica de luta livre nos jogos olímpicos de Atlanta em 1996. Foi uma vitória digna de um combate de Wrestling. O adversário era maior e mais forte, Angle competia com um pescoço partido, esteve em desvantagem, e mesmo assim recuperou e triunfou. Pouco tempo depois, Angle “vendeu-se” à modalidade na qual tinha chegado ao topo de carreira, e enveredou por um novo rumo, que o poderia ter conduzido à ECW, mas acabou por levar à WWE. O herói olímpico trocou a sua integridade, com grande inteligência, pelos dólares do entretenimento.
Na WWE, Angle conheceu um sucesso considerável, com a vitória em praticamente todos os campeonatos relevantes. Mas aquele cântico que tão bem jogava com o seu tema de entrada de “you suck” nunca o largou. Desde a primeira hora, Angle foi tamb+em vítima de cânticos de “aborrecido”, e os fãs nunca lhe permitiram tornar-se num “face” a cem por cento. O estilo semi-amador de Angle era original, mas este demorou muito tempo a aperfeiçoá-lo ao ponto a que chegou no pior momento possível: aquele em que as suas lesões se tornaram insustentáveis.
Kurt Angle conheceu uma notoriedade sem precedentes na fase final da sua estadia na WWE. Era simplesmente o melhor do Mundo, independentemente da federação. Angle era famoso como Hulk Hogan, tecnicamente ao nível de Bret Hart, e tinha finalmente encontrado a postura agressiva e intensa que lhe conferia o carisma de Steve Austin. Choveram elogios de toda a parte, sobretudo dos muito exigentes fãs da Internet que tudo julgam saber, os ditos “smarts” e “smarks”, seja lá o que isso quer dizer. Angle tinha tudo para se tornar num histórico da WWE.
Mas Angle vivia, em simultâneo, um autêntico drama. O seu corpo acumulava danos em praticamente toda a parte, e Angle vivia numa dependência mórbida de analgésicos. Durante algum período, o mesmo reconhece, esteve à beira da morte. Acabou por sair da WWE num processo de contornos obscuros, revelando nessa altura que gostaria muito de experimentar um estilo diferente, as artes marciais mistas. Tal não passou de uma distracção, pois Kurt Angle foi em três semanas apresentado como reforço da TNA. O herói americano foi descartado pela maior federação do Mundo.
A TNA acreditava que, ao contratar o melhor Wrestler no activo, as audiências do seu Impact aumentariam exponencialmente, e seria o início de uma mudança no sumidouro de verbas que a companhia é. Já os fãs, e os sítios de notícias da especialidade, ficaram indignados. Alguém no estado de Angle, com toda a probabilidade, acabaria morto no ringue, e a TNA seria responsabilizada. Algumas vozes mais razoáveis tentaram dizer que, por um lado, os problemas da companhia não seriam resolvidos com Angle, pois são mais profundos, mas que por outro lado também nada faria prever que Angle piorasse, pois a TNA faz gravações de duas em duas, ou mesmo de três em três semanas, dando-lhe muito tempo livre para cuidar da sua saúde. Só que, como sempre acontece, não são as vozes mais ponderadas aquelas que se escutam. É demasiado excitante que algo grandioso, positivo ou negativo, possa acontecer, e quebre a monotonia instalada, nem que precariamente, nos diversos domínios que não evoluem à velocidade que gostaríamos.
O tempo passou, e traiu os fãs profetas do apocalipse, vindo dar razão aos menos sensacionalistas e mais prudentes. Angle ainda está vivo. Não morreu no ringue, nem fora dele. Não está a piorar, e que se saiba o seu consumo de analgésicos já não é nada de preocupante. Recuperou a sua vida familiar, que se encontrava destroçada pelos requisitos de quase exclusividade da WWE, e neste momento a sua esposa até participa na sua carreira.
Mas, para completar os altos e baixos da forma como a carreira de Angle foi vista ao longo do tempo, também os esperançosos da TNA se enganaram. Com Angle, a TNA não só não piorou, como até diminuiu ligeiramente as suas audiências. Kurt Angle não é o mesmo da WWE, tendo acabado por se tornar um monopolista do topo da companhia pior do que Jeff Jarrett algum dia o foi. Angle, neste momento, é um empecilho que impede os lutadores mais talentosos, como Samoa Joe, de ascenderem ao degrau mais elevado da companhia. Isto serviu para congregar o ódio dos fãs, sobretudo dos mais acérrimos anti-WWE. O herói americano, na verdade, não passa de mais um herói descartado.
Em suma, pegando nas palavras da semana passada, no Wrestling não podemos saber quem é merecedor da nossa fé. Quando tentamos adivinhar, erramos completamente, e repetidamente. Acabamos por elevar pessoas normais ao estatuto de heróis, estatuto que ninguém consegue manter. E, aí, deitamo-los abaixo, e encontramos um herói novo. Provavelmente isso acontece devido à nossa ânsia de projectarmos nos outros os nossos próprios ideais, a nossa vontade e ideologia, e nunca vermos as pessoas e as coisas pelo que elas são. Acredito que é um efeito parecido que causa a separação tão vincada e militante entre fãs da WWE e fãs das federações independentes, que será o assunto da próxima semana.
A forma um pouco hipócrita como a sociedade entende a profissão de soldado, ou pelo menos como o fazia à data, era esta mesmo: como heróis descartáveis. Usa-se um, cria-se outro. Não é tão dramático como enviar um jovem para a sua morte, mas o facto é que também na sociedade civil com grande facilidade se transformam indivíduos normais em pessoas extraordinárias, apenas para mais tarde os ver cair, destroçados pelo mesmo sistema que lhes conferiu notoriedade. Andy Warhol designou este efeito pelos tais 15 minutos de fama a que supostamente todos temos direito.
Mais uma vez, como em tantos outros casos, o Mundo impiedoso do Wrestling amplifica esta tendência. E acaba por fazê-lo de uma forma directa e de uma forma indirecta. A forma directa é simples, e ocorre através dos “pushs”, que são séries de vitórias ou exibições dominantes nas quais se permite a dado lutador ganhar algum tipo de realce e exposição pública. Mas basta uma situação infeliz nos bastidores, ou até um capricho do promotor da federação em causa, e de vedeta em ascensão esse mesmo lutador passa de imediato a “jobber”, sendo derrotado de forma limpa em vezes consecutivas. Tão depressa como vieram, os 15 minutos passaram.
O efeito indirecto é mais subtil, e passa-se numa esfera mais ampla que o estrito plano da relação entre federação e lutador. O efeito indirecto envolve-nos a nós, enquanto público, à imprensa, enquanto ávida por notícias que transformem o particular no geral, e aos próprios lutadores, no âmbito das suas escolhas individuais. Há casos que se tornam muito interessantes devido a este efeito indirecto. E que caso maior poderia existir do que o do grande herói americano Kurt Angle?
Kurt Angle ganhou uma medalha de ouro na modalidade olímpica de luta livre nos jogos olímpicos de Atlanta em 1996. Foi uma vitória digna de um combate de Wrestling. O adversário era maior e mais forte, Angle competia com um pescoço partido, esteve em desvantagem, e mesmo assim recuperou e triunfou. Pouco tempo depois, Angle “vendeu-se” à modalidade na qual tinha chegado ao topo de carreira, e enveredou por um novo rumo, que o poderia ter conduzido à ECW, mas acabou por levar à WWE. O herói olímpico trocou a sua integridade, com grande inteligência, pelos dólares do entretenimento.
Na WWE, Angle conheceu um sucesso considerável, com a vitória em praticamente todos os campeonatos relevantes. Mas aquele cântico que tão bem jogava com o seu tema de entrada de “you suck” nunca o largou. Desde a primeira hora, Angle foi tamb+em vítima de cânticos de “aborrecido”, e os fãs nunca lhe permitiram tornar-se num “face” a cem por cento. O estilo semi-amador de Angle era original, mas este demorou muito tempo a aperfeiçoá-lo ao ponto a que chegou no pior momento possível: aquele em que as suas lesões se tornaram insustentáveis.Kurt Angle conheceu uma notoriedade sem precedentes na fase final da sua estadia na WWE. Era simplesmente o melhor do Mundo, independentemente da federação. Angle era famoso como Hulk Hogan, tecnicamente ao nível de Bret Hart, e tinha finalmente encontrado a postura agressiva e intensa que lhe conferia o carisma de Steve Austin. Choveram elogios de toda a parte, sobretudo dos muito exigentes fãs da Internet que tudo julgam saber, os ditos “smarts” e “smarks”, seja lá o que isso quer dizer. Angle tinha tudo para se tornar num histórico da WWE.
Mas Angle vivia, em simultâneo, um autêntico drama. O seu corpo acumulava danos em praticamente toda a parte, e Angle vivia numa dependência mórbida de analgésicos. Durante algum período, o mesmo reconhece, esteve à beira da morte. Acabou por sair da WWE num processo de contornos obscuros, revelando nessa altura que gostaria muito de experimentar um estilo diferente, as artes marciais mistas. Tal não passou de uma distracção, pois Kurt Angle foi em três semanas apresentado como reforço da TNA. O herói americano foi descartado pela maior federação do Mundo.
A TNA acreditava que, ao contratar o melhor Wrestler no activo, as audiências do seu Impact aumentariam exponencialmente, e seria o início de uma mudança no sumidouro de verbas que a companhia é. Já os fãs, e os sítios de notícias da especialidade, ficaram indignados. Alguém no estado de Angle, com toda a probabilidade, acabaria morto no ringue, e a TNA seria responsabilizada. Algumas vozes mais razoáveis tentaram dizer que, por um lado, os problemas da companhia não seriam resolvidos com Angle, pois são mais profundos, mas que por outro lado também nada faria prever que Angle piorasse, pois a TNA faz gravações de duas em duas, ou mesmo de três em três semanas, dando-lhe muito tempo livre para cuidar da sua saúde. Só que, como sempre acontece, não são as vozes mais ponderadas aquelas que se escutam. É demasiado excitante que algo grandioso, positivo ou negativo, possa acontecer, e quebre a monotonia instalada, nem que precariamente, nos diversos domínios que não evoluem à velocidade que gostaríamos.
O tempo passou, e traiu os fãs profetas do apocalipse, vindo dar razão aos menos sensacionalistas e mais prudentes. Angle ainda está vivo. Não morreu no ringue, nem fora dele. Não está a piorar, e que se saiba o seu consumo de analgésicos já não é nada de preocupante. Recuperou a sua vida familiar, que se encontrava destroçada pelos requisitos de quase exclusividade da WWE, e neste momento a sua esposa até participa na sua carreira.
Mas, para completar os altos e baixos da forma como a carreira de Angle foi vista ao longo do tempo, também os esperançosos da TNA se enganaram. Com Angle, a TNA não só não piorou, como até diminuiu ligeiramente as suas audiências. Kurt Angle não é o mesmo da WWE, tendo acabado por se tornar um monopolista do topo da companhia pior do que Jeff Jarrett algum dia o foi. Angle, neste momento, é um empecilho que impede os lutadores mais talentosos, como Samoa Joe, de ascenderem ao degrau mais elevado da companhia. Isto serviu para congregar o ódio dos fãs, sobretudo dos mais acérrimos anti-WWE. O herói americano, na verdade, não passa de mais um herói descartado.Em suma, pegando nas palavras da semana passada, no Wrestling não podemos saber quem é merecedor da nossa fé. Quando tentamos adivinhar, erramos completamente, e repetidamente. Acabamos por elevar pessoas normais ao estatuto de heróis, estatuto que ninguém consegue manter. E, aí, deitamo-los abaixo, e encontramos um herói novo. Provavelmente isso acontece devido à nossa ânsia de projectarmos nos outros os nossos próprios ideais, a nossa vontade e ideologia, e nunca vermos as pessoas e as coisas pelo que elas são. Acredito que é um efeito parecido que causa a separação tão vincada e militante entre fãs da WWE e fãs das federações independentes, que será o assunto da próxima semana.
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1 Comentários:
A contratação de Angle por parte da TNA, foi talvez uma das jogadas mais inconsequentes que a federação já fez. A TNA ao contratar Angle no ano passado teve um e apenas um objectivo - audiências televisivas. Jarrett deve ter pensado que ao contratar um nome de topo de outra federação, possivelmente o melhor wrestler da actualidade na época seria uma jogada de mestre, e de certa forma até foi. Primeiro, e mais importante, conseguiu chamar a atenção de todos os fãs de wrestling para a TNA. Pergunto-me se alguém que se interesse minimamente por wrestling, não viu os shows e PPVs nos tempos que sucederam a contratação de Angle. Depois, tivemos também toda a história contada no artigo sobre o estado físico de Angle. Muitas pessoas achavam na altura que Angle poderia a qualquer minuto "cair para o lado" dentro do ringue. Vários foram os que defenderam o seu estado de saúde, acusando a TNA de assassina. Tudo isso parece ser uma má consequência, mas se bem analisada, acabou por não ser, já diz o ditado: Falem mal, mas falem de mim...
Passado o período imediato à contratação, Angle teve uma feud com Samoa Joe bastante interessante. A série de combates entre ambos foi fenomenal, um dos pontos altos de toda a história da TNA. Contudo, a TNA não soube onde parar, o que foi o grande erro desta contratação. Em poucos meses, Angle era não só Campeão Mundial, como também dono de todos os títulos da federação, cortando pela raiz toda e qualquer possibilidade do talento da casa aparecer e brilhar. Pode parecer um exagero, mas não é. Com um programa de 45 minutos onde mais de metade era totalmente dada a Angle, juntando a necessidade de encher um card de um PPV, qual era a possibilidade de alguém começar a brilhar? Praticamente nula.
Espero que a TNA pondere a situação de Angle muito bem. Por vezes, é melhor abandonar algo no seu ponto de interesse máximo do que tentar prolongar esse mesmo momento até a eternidade...
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